Tamili da Silva - As Tantas Mulheres que nos Habitam.

Conheci Tamili, não Tamires, é com a letra L mesmo, TAMILI, há oito anos, enquanto assistente social atuando no Serviço de Proteção à Criança e Adolescente em Situação de Violência, na época ela tinha seus 12 anos e eu era uma profissional recém formada.

Ao me deparar com suas vivências, assim como tantas outras, de existências limítrofes submersas em condições de vulnerabilidade social extremas, me pegava imaginando: Isso daria um bom filme, livro ou qualquer outro meio que materializasse aquelas narrativas. Contudo, assistentes sociais não estão autorizadas a revelar a identidade ou informações obtidas através do exercício profissional, naqueles momentos eu fotograva apenas os olhos e guardava tudo para mim, num HD mental.

De algum modo aquelas cenas alteraram sensivelmente minha percepção de mundo, a maioria das pessoas veem outros seres humanos em condições extremas de modo muito distante, mas enquanto assistente social é necessário intervir, do fazer profissional é exigido resoluções ou ao menos a proposição de alternativas as demandas dos sujeitos.

Talvez tenha sido Deus, o destino ou puro acaso, mas nos reencontramos, agora eu não trabalhava mais como assistente social e carrega comigo uma câmera, meu passaporte de comunicação com o mundo, eu podia contar sua estória, álias, não apenas poderia, como deveria, esta era a minha missão.

Muitas vezes me sinto culpada, por não me dedicar exclusivamente à sua estória, me sinto culpada por não conseguir ficar com ela um número maior de horas ou dias, há certo peso em retratar sua vida de modo a não estigmatizá-la, meu objetivo neste projeto não é apenas explorar suas vulnerabilidades visualmente, mas apresentá-las ao mundo e suscitar debates haja vista os altos índices de mulheres em situações de violência.

Tamili encontrou na prostituição uma alternativa de sobrevivência possível e um meio de manutenção da dependência química em crack, contraiu o vírus HIV do mesmo cliente que sua mãe, um de seus filhos vive com o pai, um deles foi adotado e outro vive com sua tia Rosana, sua avó faleceu, a mãe também e mantém de modo esporádico, certo contato com sua irmã Thaynara. Vez ou outra troco mensagens, com sua tia e irmã, repassamos notícias sobre a Tamili e compartilhamos nossas angústias e esperanças.

Durante um de seus internamentos organizei seus materiais de higiene, ela permaneceu internada pouquíssimos dias e fugiu. Conversamos sobre essas tentativas de mudança na vida da Tamili, uma mudança que talvez jamais aconteça dada as circunstâncias.

Seja atuando como assistente social ou a fotografando, não possuo esse anseio em “salvá-la”, afinal, como poderia? Minha missão está para muito além de um pragmatismo messiânico, percebo nossa colaboração enquanto personagem e storytelling, meu trabalho é relatar, contar, registrar, escrever, entrevistar, gravar, é oportunizar espaço pra que outros a conheçam – a singular história de uma menina, dependente química filha de outra dependente química, a história de uma mãe marginalizada, da sua infância roubada, o retrato desta sociedade disfuncional que maltrata e oprime, que mesmo em cidades pequenas se assemelha e muito com os cenários dos viadutos da grande São Paulo.

Nos encontramos em parques, pelas ruas, na antiga pensão que foi interditada pelo corpo de bombeiros e posteriormente demolida, nossos encontros são casuais e sem grandes formalidades, muitas vezes ela me pede dinheiro, quando tenho na carteira dou, às vezes não tenho dinheiro vivo, outras vezes comemos algo juntas - ela não gosta de mostarda, nesses instantes compartilhamos sobre nossas vidas, os filhos, damos risada, Tamili é uma das tantas mulheres que nos habitam.

Termino aqui, com nó na garganta.